sexta-feira, 23 de maio de 2008

Diz-me como diriges e te direi quem és

Poucas coisas evidenciam tão claramente o caráter de alguém quanto vê-la ao volante. Arrogância, insegurança, ansiedade, tranqüilidade, solidariedade, incoerência, são algumas das características que brotam a nossos olhos quando observamos alguém dirigindo. Chega a ser patética a impressão que alguns têm de que são os donos das ruas, dirigindo sem levar em consideração nem os demais veículos nem os pedestres, esses coitados, sempre os mais prejudicados. É também surpreendente a calma e respeito como alguns motoristas conseguem manter-se mesmo em situações bastante tensas do trânsito. Quanto mais aumentam os engarrafamentos e os problemas de trânsito e estacionamento, mais essa questão precisa ser pensada por todos nós.

A indústria dos automóveis trabalha esta questão desde seus primórdios. Não se compra um carro apenas pelo seu uso, mas também pelo que ele simboliza em nossa cultura. A escolha do tipo de carro dá a primeira clivagem entre os proprietários. É claro que aqui temos fortemente o elemento econômico, como não poderia deixar de ser. Muitos gostariam de ter um determinado carro, que melhor expressaria seu jeito de ser, mas tem que contentar-se com aquele que seu dinheiro pode comprar, ainda que em infinitas parcelas. Na verdade, como em quase tudo não vida as pessoas gostaria de ser de uma forma, mas pelas mais diversas razões, se limitam a um esboço pálido de seus desejos. Ainda assim, dentre aqueles modelos ao alcance de determinado motorista, a opção por mais restrita que seja, revela um traço de seu perfil.

Mais importante que seu veículo, no entanto, é como a pessoa se comporta dentro da armadura de uma tonelada que tem nas mãos. Não podemos nos restringir ao acatamento das leis de trânsito, ainda que esta não deixe de ser uma questão importante. Há motoristas que se negam a indicar com a seta o movimento que pretende fazer com seu veículo, como se isso apenas dissesse respeito a si próprio. Outros fingem desconhecer as placas, com se essas tivessem a única finalidade de dificultar seu livre dirigir. A faixa de pedestres, então, é uma marca insólita do desrespeito àqueles que não são dotados de quatro pés de borracha. Em poucos lugares do país se conseguiu firmar o direito do pedestre de atravessar o sagrado espaço destinado aos motoristas.

Nas estradas um quadro totalmente diferente das cidades se abre. O limite de velocidade, ainda que arcaico, é descumprido por unanimidade. As faixas e placas destinadas a organização das ultrapassagens, parecem elementos decorativos do asfalto. Para além da obviedade, em viagem os motoristas parecem sentir-se a vontade para apresentar uma faceta diferente de seu dia-a-dia. Esta observação não se aplica, por óbvio, aos profissionais das estradas, em caminhões ou automóveis, estes têm uma cultura própria com seus valores, hierarquias e significados. O motorista urbano, em primeiro lugar costuma se muito mais perigoso do que o estradeiro, visto que não está acostumado a conduzir seus bólidos nas mesmas condições. As respostas dos veículos são totalmente diferentes e nem todos estão aptos a compreendê-las e mesmo responder a elas. A habilitação para conduzir não menciona isto, mas sua aprendizagem prática é restrita ao trânsito urbano.

A relação álcool e volante é outro elemento importantíssimo nesta questão. Há alguns que insistem na tese de que bebeu, não dirija, acreditando ser possível um dia chegarmos a tal purismo. Considero que seria muito salutar que chegássemos neste padrão, mas, sinceramente, não temos alternativas para oferecer aos consumidores de álcool, dentre os quais me incluo. Quando olhamos para o estacionamento de qualquer festa ou estabelecimento noturno, não conseguimos sequer supor que tal quantidade de motoristas se absteriam por completo do consumo de álcool naquela ocasião. Pensar um dia em que estes, já prevendo o desfecho procurariam outro meio de transporte para suas saídas, significaria por um lado, alterar significativamente o sistema de transporte público para que possa absorver essa demanda, o que está muito longe de acontecer. Por outro lado, isto também revisaria completamente a decisão de comprar um automóvel, dado que a grande maioria das pessoas o tem para essas ocasiões. Este parece um belo quadro, mas tem que ser encarado como tal, isto é, não se pode apenas querer que os motoristas não bebam, isoladamente.

É sabida a catastrófica relação entre álcool e volante. O sujeito quando bebe perde muito de sua capacidade de dirigir e de avaliar sua condição para tal. Dificilmente um condutor admitirá que não esteja em condições de dirigir, por mais que esse fato seja evidente. O parâmetro legal é de completa abstinência, embora todos saibam que isso não é factível nos dias atuais. Quando consideramos a quantidade de pessoas que dirigem sob efeito de álcool em uma noite de final de semana em determinada cidade, e a quantidade de acidentes ocorridos na ocasião, somos obrigados a admitir o espantoso sucesso dos motoristas embriagados. Mais uma vez, não se trata de minimizar o risco do álcool no trânsito nem de diminuir o dolo dos motoristas que bebem. A questão é tão somente situar o debate nas condições reais e não na quimera de motoristas abstêmios, ou bebedores voltando de taxi para suas casas depois de uma noite de festa. É de carro que eles voltam e a maioria esmagadora não se envolve em acidente, apesar de representarem um risco enorme para si e para os demais transeuntes, embarcados ou não. O que fazer diante disso é o que temos que pensar.

Retomando a índole do motorista urbano, mais que fiscalização e multas, precisaríamos uma campanha que levasse as pessoas a avaliar seu perfil no trânsito. Não de maneira simplista, encaixando em estereótipos do tipo, motorista padrão, motorista perigoso, motorista afoito, motorista inseguro. Mais útil seria que cada um pudesse responder para si como tem lidado com os demais motoristas, com os pedestres, com os veículos coletivos (que devem ter tratamento prioritário), com os motociclistas, com os demais ocupantes do veículo, com as autoridades de trânsito, enfim, com a organização dos fluxos humanos nas cidades. Que isto resulte não em qualquer procedimento burocrático, do tipo curso de bons modos ao volante, mas em metas pessoais para que cada qual se aprimore ao dirigir. Como fazer para garantir deslocamentos seguros, ágeis e que não atrapalhem aos demais? Como contribuir para que as cidades se tornem ou voltem a ser lugares viáveis de se viver e trabalhar?

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